Ricardo Tatoo tem 43 anos e já fez muita coisa relacionada à música e arte. Formado em programação visual, foi um dos primeiros artistas a atuar com o “stencil-graffiti” no Brasil. Seu trabalho já esteve em galerias de arte e intervenções públicas no Brasil e na Europa.
Foi o responsável pela linguagem visual de marcas como Cavalera e Harley-Davidson. Além disso, criou capas para discos de bandas como Inocentes, Rodox, Nitrominds, Sepultura e Cordel do Fogo Encantado, entre muitas outras. A mais atual é “Século Sinistro”, elogiado disco de 2014 do Ratos de Porão.
Através do projeto Arte Ataque Oficina, Tatoo também ministra oficinas de graffiti em faculdades, ONGs e centros sócio educativos, sempre usando a linguagem da arte de rua como instrumento de transformação social e valorização da diversidade cultural brasileira.
Conversei com Tatoo sobre sua carreira, sua passagem de sucesso pela grife Cavalera, seu trabalho com o grafitti e a relação constante de todos seus trabalhos com a música:
– Eu sei que seu trabalho principal é a arte urbana e o grafite. O quanto disso está relacionado à música?
Meu trabalho se afinou com a música quando fui diretor de arte da marca streetwear Cavalera, de 1998 a 2005. Lá conheci e parcerei com grandes nomes da música: a banda Inocentes, Iggor Cavalera, Rodolfo Abrantes, Cássia Eller, Marky Ramone, Bruce Dickinson, TSOL, Agent Orange, Tihuana, Dudu Nobre, Ice Blue, Grinders, Nitrominds, Cordel do Fogo Encantado… A marca patrocinava bandas como estratégia de marketing e essa parceria me acrescentou um grande mergulho na arte e música. Estes citados são apenas alguns, sendo que com alguns tenho grande afinidade até hoje e outros apenas de passagem.
– Você já trabalhou bastante no meio musical. Fale um pouco de suas experiências.
Fiz boas parcerias com bandas e isso me enriqueceu muito de cultura. Quando conheci Iggor Cavalera e sua postura de protesto, em 1998, consegui enfim canalizar minha insatisfação com as mazelas deste mundo caótico e transformar em arte de protesto. Eu e Iggor fizemos algumas parcerias na arte urbana, grafitando o bar Sarajevo (SP), por exemplo. Iggor me convidou para fazer a capa do segundo álbum do Sepultura com o Derrick Green no vocal, “Nation”, onde criei o logo pentagrama com o clássico logo “S” e os desenhos iniciais. Depois destes layouts, o artista urbano Sheppard Farey enfim desenvolveu a capa.
Outro grande parceiro da mesma época é o Clemente (Inocentes). Trabalhávamos juntos e na época ele me convidou pra fazer a capa do histórico álbum “Garotos do Subúrbio”, relançado em CD na época. Grande honra, pois tem as músicas que mais gosto até hoje. Eu e Clemente nos tornamos grandes amigos e até hoje produzo as capas dos álbuns dos Inocentes, contabilizando uns 9 álbuns mais ou menos (perdi a conta!) e algumas estampas de camisetas. Atualmente estou criando a capa do próximo EP em vinil que sairá este ano ainda.
Fiz o logo da banda pós-Raimundos do Rodolfo Abrantes, o Rodox. Minhas estampas “TV Kills” foram parte integrante da bandas no álbum e apresentações.
Várias outras parcerias se formaram. Um dos grandes é André Alves, do Statues on Fire e ex-Nitrominds, para quem fiz artes para cartazes e capa de CD. O punk, o rock e a sua característica cultura do faça-você-mesmo, me proporcionam trabalhar com pessoas que desde sempre nadaram contra a maré e arregaçam as mangas muito antes desta facilidade tecnológica de hoje em dia. Atitude e protagonismo real.
– A capa do disco “Século Sinistro” (2014) do Ratos de Porão é sua. Qual foi a ideia pra criar essa capa?
Esta história é massa: em outubro de 2013 eu estava em Cianorte (PR), ministrando uma palestra e oficinas sobre arte urbana e graffiti stencil, quando recebi uma mensagem insana do João Gordo, que até então não conhecia (fora nas dezenas de shows que assisti). Na mensagem ele comentava sobre uma série de artes que fiz para um álbum split onde o Ratos de Porão cantaria Sepultura e Sepultura cantaria Ratos de Porão. De fato a arte ficou muito boa, em 2000 mais ou menos, mas não rolou por causa da mulher do Max Cavalera que deu uma de Yoko Ono e barrou o projeto. É o que sei sobre a não realização do split.
Enfim, estava em Cianorte e a mensagem dizia: “Salve seu Tatoo, tudo bem? A arte do split RxDxPx Vs. Sepultura é realmente sua? Tenho esta arte no meu banheiro e sempre que tô cagando fico olhando pra ela. Daí surgiu a ideia: Você quer fazer a capa do próximo álbum do Ratos?” (risos)
Uma vez uma garota queria comprar um quadro meu pra por no banheiro dela e eu me ofendi. Disse que pro banheiro ela poderia comprar aqueles quadros com chimpanzé escovando os dentes, jogando sinuca… e no fim, mordi a língua. De todos os trabalhos com bandas, este é de longe o mais relevante e importante para mim e foi inspirado num momento de reflexão no trono.
A concepção total foi obra do João Gordo. Fui o decodificador, mas o cara é gente boa demais, e muito esclarecido. Sugeri que a arte fosse feita em uma grande tela de canvas e de usarmos a técnica do graffiti stencil. Expliquei que o graffiti no Brasil começou com o estilo stencil, no final dos anos 70, e sua origem vem de referências do movimento punk de protesto europeu e dos álbuns de heavy metal, assim a arte ganharia alma e sairia do pasteurizado digital. Como o álbum foi gravado analogicamente, isto é, ao vivo e sem aquele retoque de protools e etc, o João acatou a ideia: fomos além do layout digital e a arte que ele aprovou virou uma tela de +- 9 x 2,5m ao todo, contando capa, contra capa e fundo para as letras das músicas.
– Na sua série “Heróis do Brasil”, você compara Luiz Gonzaga a Elvis.
A ideia do Gonzagão ser o Elvis é apenas uma brincadeira no estilo Pop Art. Por que valorizar apenas a cultura estrangeira? Às vezes uma paródia vale como reflexão.
– Quais são suas bandas preferidas?
São muitas, entre bandas, artistas solo e grupos de rap…
Brasil: Ratos de Porão, Inocentes, Autoramas, Sabotage, Flicts, Polara, RZO, De Menos Crime, GOG, Gonzagão, Garotos Podres, Zefirina Bomba, Devotos, o Rappa, Agrotóxico, Nação Zumbi, Dead Fish e Questions.
Gringos: Ramones, Red Hot Chili Peppers, John Frusciante, AC/DC, Atari Teenage Riot, Rob Zombie, Turbonegro, Motorhead, Mudhoney, Descendents, Bad Religion, Face to Face, Kiss, Fugazi, Monster Magnet, Misfits, Rasta Knast, Husker Dü.
– A música inspira seus grafites?
Musica definitivamente é alimento da arte. Sem trilha sonora não existe inspiração. Em todos os álbuns que fiz a capa, obrigatoriamente preciso ouvir o som do álbum. O legal disso é ouvir os sons em primeira mão, muitas vezes no momento da gravação, no estúdio.
– Já foi convidado pra criar mais capas de discos este ano?
Sim. Atualmente estou produzindo o novo EP dos Inocentes e o CD da banda Guerrilha. Já fiz Cordel do Fogo Encantado, Flicts, RDP, Inocentes, Nitrominds/D.Sailors.., preciso lembrar, são muitos!
– Você já trabalhou na Cavalera. Qual era seu trabalho lá?
Era diretor de arte. Entrei quando a marca tinha dois anos de vida e estava em vias de falência por causa de separação de sociedade. Ao assumir a direção, decretei a arte da Fênix, que já existia como uma estampa da série brasões como logotipo oficial e assim a marca ganhou identidade e literalmente decolou.
Comecei como diretor de arte de ninguém, pois só eu desenhava para a marca. Mais tarde tive uma equipe de arte com uns 15 designers, no auge da produção da marca. O carro chefe era e ainda é estamparia em camisetas. Também fazia vitrines, cenários de desfiles, campanhas, tags, adesivos, catálogos, campanhas fotográficas, convites para desfiles, dirigia o conceito das trilhas sonoras de desfile, que teve DJs como Kid Vinil, DJ Zegon (Planet Hemp e Tropkillaz), Iggor Cavalera, DJ Marky, DJ Patife, Edu Corelli, entre outros. Minha direção com estas feras do som era dar total liberdade e botar peso no som. (risos) Bom demais.
Também criava os temas das coleções junto da equipe de estilo, e o que mais precisasse. Carregar cenário, varrer… Vestia a camisa de corpo e alma. Com certeza foi o auge da minha carreira quando trabalhava no sisteminha de funcionário de empresas e etc, pois aliar música e arte é o sonho de todo artista.
– Você tinha muitos contatos ligados à música naquela época, certo?
Muitos. Difícil é lembrar quando se vivencia. Recebi as bandas TSOL e Agent Orange na loja Cavalera, pois como citei, a marca patrocinava bandas com suas roupas como estratégia de marketing. Este era o momento áureo da minha carreira, pois ganhava ingresso para qualquer show que quisesse. Qualquer show mesmo. Era só ligar pra secretária do dono da marca e dizer qual show e que rádio patrocinava que ela retornava perguntando se eu queria camarote ou pista. Lógico que a resposta era pista. No caso do show do TSOL e Agent Orange, rolou camarote (gentileza das bandas), e logo na primeira música o vocal do Agent Orange me reconheceu e me cumprimentou. São bobagens boas de se viver.
Viajar pra Nova Iorque e Califórnia com Ice Blue (Racionais MCs) a trabalho também foi algo absolutamente inusitado. Cabaço que sou, fiquei com meio medo dos rolês que fizemos. Deixei de ir em algumas festas com Blue porque era só mano quente. Eu com essa cara de latino não encarei as mais roots. (risos)
Conhecer Bruce Dickinson, Marky Ramone, Cássia Eller, recebê-los na fábrica e tratar diretamente com eles, quebrando aquela imagem de que personalidades famosas são seres de outro mundo e sim pessoas de verdade, valeu como lição de vida.
Uma passagem marcante na Cavalera era o momento de apresentar a coleção da marca para o Iggor, que leva o nome da marca. Como ele é muito ligado às artes e comportamento, toda coleção era passada pela aprovação dele antes de ser produzida. Pra quem não acompanha a moda, assim como eu era, vale entender que de 6 em 6 meses as marcas fazem uma coleção nova, isto é, todo semestre é criada uma série de roupas e acessórios de acordo com um tema pré estabelecido. Na minha época os temas eram insanos, tal como realismo fantástico, novelas antigas (deboche da tevê), medidas de segurança, motocross e etc.
Depois que a equipe de criação, que era uma equipe de ouro, desenhava as roupas e eu as estampas e o Iggor voltava das turnês mundo afora, rolava uma reunião de apresentação dos desenhos da coleção. Nas reuniões os estilistas explicavam tudo que rolou. O tema, os desenhos das roupas, eu falava das estampas, e por aí vai. Frequentemente ele via tudo calado e só falava: “Legal. Legal. Legal”, na tentativa de encurtar a reunião. Aí a reunião acabava, todos saíam da sala e eu ficava pra gente conversar informalmente, sobre as turnês, som, arte de protesto… papo furado. Mas na real, aquela hora era a hora que ele se sentia a vontade de dizer o que realmente achava de verdade da coleção. Não precisa dizer que moda tende ao lado fashion. Afinal, é moda. Aí ele falava: “Cara, como vou vestir estas roupas? Sou baterista! Não dá pra usar estas roupas modernas!” Aí ele explicava sua opinião e eu “traduzia” pra equipe de estilo. Fazia um pente fino com ele e repassava pra equipe.
O massa da Cavalera é a ligação da moda com a música. O momento mais legal da minha carreira. Muita música e liberdade total para criar. Nos eventos do São Paulo Fashion Week, a Cavalera era a marca mais esperada. Fazíamos cenários malucos, convites malucos e trilhas sonoras insanas! Igualmente os convidados para assistir os desfiles também eram pra lá de inusitados.
Uma vez, na coleção “Realismo Fantástico”, um dos convidados foi o mutante Arnaldo Baptista. Pode não parecer, mas o mundo da moda é um lugar de muito trabalho sério e grande responsabilidade, pois esses eventos são como grandes circos. Muita gente trabalhando, desde faxineiros a eletricistas, técnicos de som, costureiras, seguranças, celebridades, etc. Nessa maluquice toda, o Arnaldo e sua esposa, Lucinha, ficaram meio deslocados, já que chegaram antes do evento, durante a montagem. Foi um dos momentos mais gratificantes de estar nesse meio da moda. Consegui encaminhar minha parte do trabalho e fiquei com Arnaldo batendo papo furado. A luz e simplicidade dele é encantadora. Ele achou tudo lindo, as pessoas lindas, as luzes… Existe algo de especial nele que dá pra identificar nas músicas e entrevistas antigas. O modo de falar. No fim das contas consegui assistir o desfile ao lado dele, Lucinha e da Sonia Abreu, a primeira DJ do Brasil, lendária pelo seu programa “Músicas do Quarto Mundo”.
– Você já teve alguma banda?
Eu me contento como fã. Até hoje gosto de ir perto do palco e pogar. Só mosh que não faço mais. Tô velho.
Não sei tocar instrumento algum. Só tinta mesmo.
Publicado em
eletrônica,
entrevista,
hip hop,
rock e marcado
Agent Orange,
André Alves,
Arnaldo Baptista,
Arte Ataque Oficina,
Bruce Dickinson,
Cavalera,
Cássia Eller,
Clemente,
Cordel do Fogo Encantado,
Derrick Green,
Dudu Nobre,
Elvis Presley,
entrevista,
Grinders,
Harley Davidson,
Ice Blue,
Iggor Cavalera,
Inocentes,
Luiz Gonzaga,
Marky Ramone,
Max Cavalera,
Nitrominds,
Racionais MC's,
Ratos de Porão,
Ricardo Tatoo,
Rodolfo Abrantes,
Rodox,
Sarajevo,
São Paulo Fashion Week,
Século Sinistro,
Sepultura,
Sheppard Farey,
Split,
Statues On Fire,
Tihuana,
TSOL,
TV Kills,
Yoko Ono